Escrevo esta coluna na volta de Bruxelas, onde participei mais uma vez na avaliação de projetos de pesquisa do ERC (European Research Council), a agência científica da União Europeia.
Todo ano, o ERC abre chamadas em quatro modalidades. Uma delas, chamada “synergy”, financia colaborações entre até quatro pesquisadores, dos quais um pode estar em outro continente. As outras três –”starting”, “consolidated” e “advanced”– apoiam projetos individuais realizados na Europa por pesquisadores em diferentes estágios da carreira. O “grant” (financiamento) pode alcançar 2,5 milhões de euros (R$ 15 milhões) por pesquisador para cinco anos.
Comecei a participar no julgamento “advanced” em 2019, e desde 2023 sou o coordenador do comitê da matemática. Aceitei o convite por curiosidade profissional: tendo sido responsável por avaliação científica no CNPq, na Capes e na Faperj, queria saber como atuam as principais agências mundiais (também já colaborei com a National Science Foundation dos Estados Unidos), entender o que podemos aprender com elas. Seis anos depois, valeu muito a pena.
A principal tensão nessa área diz respeito ao uso da “cientometria”: em que medida a avaliação da pesquisa pode estar baseada em métricas quantitativas como o número de citações dos artigos científicos ou o fator de impacto dos periódicos em que são publicados?
A posição da agência europeia é cristalina: tal como a NSF, o ERC aderiu formalmente à Dora (Declaração de São Francisco sobre Avaliação de Pesquisa), a qual bane o uso de tais métricas, apontando que “o conteúdo científico de um artigo é muito mais importante do que as métricas da publicação ou o nome do respectivo periódico científico”. Assim, seus julgamentos estão baseados exclusivamente em avaliações qualitativas (subjetivas!) do conteúdo de cada projeto realizadas por especialistas renomados. Foi assim que o ERC construiu um padrão de excelência respeitadíssimo, um dos raros consensos no complexo cenário europeu.
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Mais de 3.500 instituições científicas no mundo todo já aderiram à Dora, e está mais do que na hora das agências científicas brasileiras fazerem o mesmo (o Instituto Serrapilheira já é signatário). Por que importa? Julgar o conteúdo científico dá mais trabalho do que usar métricas numéricas. Mas é fundamental para garantir uma avaliação científica de alto padrão, que é condição indispensável para o avanço da ciência.
Estamos indo na boa direção? Anos atrás, quando eu coordenava a matemática no CNPq, o presidente, professor Erney Camargo, elogiava o fato de sermos a área mais qualitativa em nossas avaliações, enquanto que, ironicamente certas áreas de humanas usavam critérios puramente quantitativos. “Os matemáticos sabem bem o que números não podem fazer por nós”, expliquei.
Mas de então para cá todas as áreas de conhecimento vêm sendo induzidas a priorizar critérios alegadamente “objetivos”, ainda que tenham pouco a ver com a relevância da pesquisa proposta. Do anseio por uma suposta “transparência” até o fantasma da judicialização dos julgamentos, são muitas as pressões para que o mérito da pesquisa seja avaliado por regras numéricas, muito mais ligadas à quantidade da produção do que à qualidade do projeto científico.
Há esforços em curso para tentar mitigar essa tendência nociva para a ciência brasileira. Mas o caminho é longo e passa pela ampla adesão aos princípios da Dora.
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Fonte: Folha de S. Paulo