Respiro fundo antes de decidir se vale a pena comentar recentes polêmicas sobre racialidade no Brasil. É um debate perigoso e escorregadio, que flerta com a pós-modernidade e, à primeira vista, parece nos convidar a relatar inúmeras experiências individuais de racismo para justificar por que nos identificamos como negros. Mas não é por aí.
Tive a sorte de receber régua e compasso do Movimento Negro Brasileiro. É justamente por isso que não faz qualquer sentido admitir a hipótese de separar a chamada “categoria pardo” dos negros brasileiros. A primeira lição que o movimento nos ensina é a importância de uma leitura coletiva, estrutural e radical da realidade negra no país.
Coletiva porque a luta contra o racismo sempre se pautou por passos comuns, parte de um projeto de Brasil.
Estrutural porque nos ensinou a compreender o papel central do racismo na formação do Estado brasileiro e a reconhecer as alianças necessárias e o campo político ao qual devemos nos vincular.
Radical porque nunca se contentou com análises superficiais ou conciliatórias: sempre apontou que o racismo é constitutivo do capitalismo brasileiro e que apenas outro modelo de Estado pode garantir justiça racial.
Como nos lembra Sueli Carneiro em sua tese e livro “Dispositivo de Racialidade – A construção do outro como não ser como fundamento do ser”, a produção de conhecimento no Brasil historicamente invisibilizou e deslegitimou o sujeito negro. Ela afirma que “o racismo é um sistema de dominação, exploração e exclusão que exige a resistência sistemática dos grupos por ele oprimidos, e a organização política é essencial para esse enfrentamento”. Esse pensamento ecoa na máxima: ser preto, ser visível, ser reconhecido.
Ao longo de mais de um século, mesmo em meio a divergências, o movimento negro construiu sínteses políticas que guiaram nossa luta e explicam vitórias históricas: a conquista das cotas raciais, a desconstrução do mito da democracia racial, a elevação da autoestima coletiva do povo negro e, como consequência direta, o crescimento exponencial da autodeclaração de pretos e pardos nas últimas cinco décadas.
É por isso que respirei fundo. Nos últimos anos, muitos forasteiros têm falado sobre raça no Brasil. Sintoma de nossos tempos, são pessoas que acreditam que sua experiência individual basta para produzir análises “representativas” sobre a questão racial, ignorando deliberadamente a tradição coletiva e radical do movimento negro. Esse fenômeno não seria preocupante se não estivesse sendo instrumentalizado para fragilizar a noção de “negro” como categoria social majoritária, reduzindo-a a uma identidade puramente individual —exatamente o oposto do que aprendemos com nossas lutas.
O perigo de dar atenção a esses discursos é acreditar que aí reside o centro da disputa. Não reside. A afirmação de que pretos e pardos compõem uma única categoria social não foi um acaso, mas uma vitória estratégica do Movimento Negro Brasileiro. Questionar essa construção, portanto, é retroceder.
Isso não significa que não existam novos desafios —alguns, inclusive, frutos de nossas próprias conquistas, como as polêmicas envolvendo as bancas de heteroidentificação. Mas mesmo esses dilemas devem ser enfrentados com as ferramentas coletivas produzidas pelo próprio movimento.
A organização do movimento negro é permanente. Ela reflete e flui como um rio, renovando-se nas novas gerações, que hoje se reconhecem, se veem e ocupam, com muita luta, alguns espaços antes inacessíveis. Essa força se revela em iniciativas como os cursinhos populares, a exemplo da Uneafro, ou em organizações como o Instituto Peregum, que articula políticas públicas e racializa o debate social.
Por fim, talvez o critério mais claro para identificar uma liderança negra comprometida com a luta coletiva seja observar como ela se define: pelo próprio nome ou pelo nome da organização que representa. E, se não houver organização, o conselho é simples — corra.
TENDÊNCIAS / DEBATES
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Fonte: Folha de S. Paulo