O que aconteceu no Rio de Janeiro na última terça-feira (28) devia ficar em nossa história como um marco, “o 28 de outubro”. O dia em que chegou a um patamar inédito de clareza e dor —o Rio sempre na vanguarda— a tragédia da segurança pública no Brasil.
Esse promete ser um dos grandes temas da eleição presidencial do ano que vem, dizem, e parece justo que seja. O que não é necessariamente uma boa notícia. Se precisamos nomear bem as coisas antes de resolvê-las, “segurança pública” é um pântano semântico.
Com muita facilidade esquecemos ou fingimos não ver aquilo que, de tão óbvio, se torna elusivo —que o problema tem raízes na forma como nossas elites sempre delegaram a instituições violentas, das milícias do Império às atuais polícias militares, a tarefa de lidar com a massa de despossuídos fermentada em séculos de escravidão.
Educar, empregar, incluir? Nem pensar. Bater, confinar e matar, isso sim. A “segurança pública” no Brasil nasceu como a segurança de quem tinha posses —a dimensão “pública” era sua inimiga. Sendo desmedida nossa desigualdade social, descomunal tinha de ser a violência empregada na tentativa de domar seus efeitos.
Só que essas coisas não são domáveis. A brutalidade primordial antipreto e antipobre que foi uma das vigas mestras da nação brasileira começou a inflamar, a infeccionar, e evoluiu para uma sepse. Hoje as palavras soam como eufemismos covardes: açougueiros são chamados de governadores, e um massacre com 120 mortos em um só dia, de “operação policial”.
A rotina de violência para a qual desenvolvemos uma tolerância doentia, incompatível com qualquer projeto nacional decente, virou solo fértil para que prosperassem modelos amalgamados de bandidagem, negócios e poder político, a tal ponto que o mal se entranhou no tecido da sociedade —empresas, instituições, governos, parlamentos.
Eis por que uma eleição presidencial pode não ser o melhor foro para debater a questão. Fixada naquela injustiça social originária, a esquerda tem imensa dificuldade de sequer enunciar o problema, enquanto a direita, sempre dobrando a aposta na exclusão e no extermínio com fins eleitoreiros, está condenada a agravá-lo.
Quando a linguagem mais falseia que ilumina, é boa ideia buscar socorro na melhor literatura, que tem como missão fazer as palavras soarem verdadeiras. Em 1962, Clarice Lispector escreveu um texto de espantosa atualidade chamado “Mineirinho”, nome do bandido famoso que a polícia carioca acabava de matar.
O excesso de tiros da execução —13— vai transformando o alívio inicial de Clarice em horror e lucidez, até que “no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão”.
O último disparo opera finalmente, na alma da escritora de classe média da Zona Sul do Rio, a fusão das partes que a “segurança” contra o “público” tinha separado desde o início: “O décimo terceiro tiro me assassina —porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”.
Perdemos, playboys.
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Fonte: Folha de S. Paulo