O dia de Feira do Livro começou com duas escritoras veteranas apresentando suas literaturas de alta qualidade em mesas separadas, que mobilizaram público considerável para uma manhã fria de sábado.
Lançando o elogiado romance “Corsária”, coeditado por Fósforo e Ubu, Marilene Felinto abriu sua fala lendo um texto que desancava boa parte do sistema literário, incluindo a própria feira que organizou a mesa.
A conversa mediada habilmente pela crítica Luciana Araujo Marques sobrevoou alguns dos motivos principais da carreira da autora de “As Mulheres de Tijucopapo”, que agora aborda com novas tintas o tema do retorno e da insubmissão que marcava aquele livro de estreia.
Felinto reforçou que tem dificuldade de encaixar sua literatura num rótulo ou movimento. “Falar que a literatura vem de um lugar determinado não me diz muita coisa. Prefiro a literatura que vem de lugar nenhum, ou de todo lugar.”
“Dizer que a literatura é negra ou periférica às vezes reduz essa literatura de um modo que a prejudica”, afirmou, ressaltando que esse posicionamento pessoal não macula seu apoio a movimentos que defendem obras com essas identidades.
A conversa foi marcada por uma dificuldade algo cômica da escritora em definir sua obra ou explicar seu processo criativo, dizendo que sua tendência é mandar o leitor ir lá e ver como ela escreveu no livro. “Vocês do público ainda não leram, eu também não sei resumir o livro… E mesmo assim me chamaram para fazer isso”, disse, provocando risos.
Houve momentos em que Felinto pediu para a plateia falar no lugar dela, tamanho seu desconforto no palco. A certa altura a editora Maria Emilia Bender, na primeira fila, pegou o microfone para contar que a autora, sua velha amiga, “sempre falou melhor de si em inglês”, numa tendência de distanciamento.
Ao longo do debate, Felinto reclamou de ter sido alocada num “horário de xepa” no auditório menor, enquanto um homem branco —o professor Hélio de Seixas Guimarães, especialista em Machado de Assis— ocupava o palco principal.
Logo depois de Guimarães, a escritora e editora Beatriz Bracher tomou o palco para falar do livro “Guerra 1”, que lançou pela editora 34, primeira obra de uma trilogia que será composta inteiramente de trechos escritos por brasileiros que participaram da Guerra do Paraguai.
A partir de ótima mediação do escritor Joca Reiners Terron, a autora fez uma reflexão sofisticada sobre aspectos de autoria na literatura. “Era importante que não fosse um livro sobre a Guerra do Paraguai, mas um livro da Guerra do Paraguai.”
A partir de cerca de 30 livros históricos selecionados a partir de uma biblioteca de milhares deixados por um colecionador, ela fez um amplo trabalho de pesquisa para criar uma narrativa coesa e, segundo Terron, de ritmo fluido.
“Eu não sinto que é algo inovador, e sim a única maneira de falar o que eu estava vendo ali”, afirmou a autora. “É quase uma homenagem a essas pessoas. Não é uma vampirização, mas uma ressuscitação. O que me deixa mais orgulhosa é eu não existir naquele lugar.”
Mesmo com esse afastamento, Bracher se considera autora de um romance, não uma historiadora ou coisa parecida. Quando seu neto perguntou a ela se era a favor ou contra o que se fez na guerra, ela disse que o que ela escreveu é um relato, “como quando você conta uma viagem que fez”.
“Já quem lê, eu espero que saia com horror à guerra. Mas não queria que os personagens nem eu falássemos isso. Queria que fosse uma fratura exposta.”
O colunista Antonio Prata participou de uma mesa promovida pela Folha no Tablado Literário Mário de Andrade da Feira do Livro para falar sobre um território mais recente de sua produção: os livros infantis. A conversa, mediada por Gabriel Justo, teve como foco “Jacaré, Não”, obra inspirada em sua convivência com os filhos.
Publicado pela Ubu, o livro parte de uma situação cotidiana —a hora de dormir— para embarcar em uma sequência de absurdos divertidos. Com ilustrações de Talita Hoffmann, o livro aposta no humor, na repetição e no jogo entre texto e imagem para envolver os pequenos leitores.
“Provavelmente também escreveria livros infantis se eu não fosse pai, mas os livros seriam piores”, brincou Prata. Ele destacou que, embora todo texto dependa da sua forma, a literatura voltada ao público infantil exige atenção redobrada. “Todo texto tem que ter ritmo, mas o livro infantil precisa ter essa cadência de forma muito evidente”, disse.
O autor também comentou sobre a sinceridade peculiar de seus leitores mais jovens. “A grande diferença de escrever para crianças é que elas não sabem mentir. Se não gostarem do livro, vai ficar bem claro.”
A Feira do Livro segue até domingo, dia 22, com programação aberta e gratuita na praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu.
Fonte: Folha de S. Paulo